Bons julgamentos começam com remuneração certa

Extraído de Política, Cidadania e Dignidade

Bons julgamentos começam com remuneração certa

 Por Francisco Glauber Pessoa Alves

A estrutura de repartição de funções estatais classicamente predominante nas democracias ocidentais é calcada em Legislativo, Executivo e Judiciário. Os representantes natos dessas funções (correntemente tratadas como “poderes”) são os parlamentares (nos três níveis federativos), o Presidente da República, os Governadores e os Prefeitos, bem como os Juízes. Todos eles são considerados agentes políticos, particulares investidos por mandato ou concurso, de altas atribuições perante o Estado e a sociedade. Natural, portanto, que possuam acentuado grau de responsabilidade. Na esfera federal, temos os Senadores, os Deputados, o Presidente da República e os Ministros do STF, todos igualmente vinculados à União.
Também os membros do Ministério Público da União são integrantes desse status, dotados que foram pela Constituição Federal de elevadas responsabilidades e das mesmas garantias conferidas à magistratura (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos – artigo 95). Essas linhas antes desfiadas não trazem nenhuma novidade. Foram destacadas, porém, porque às raízes democráticas é que devemos voltar sempre que palavras distorcidas procurem seduzir o cidadão para o que nem sempre contribua para o Estado Democrático de Direito – aquele em que, resumidamente, os cidadãos elegem seus representantes diretamente, os cidadãos têm meios de ver seus direitos observados, ao mesmo tempo em que o Estado lhes rende o devido respeito por meio de instituições fortes e sérias.
A Constituição Federal (ela mesma, que nos assegura a democracia em que vivemos), aprimorada que foi ao longo do tempo, instituiu o regime de subsídios (artigo 39, parágrafo 4º), que nada mais é do que uma parcela única de remuneração de forma a evitar o pagamento de outros acréscimos que findaram, em tempos remotos, por acarretar falta de controle sobre o conjunto de gastos públicos – os chamados “penduricalhos”. No mesmo passo, foi instituído o teto respectivo de remuneração para cada ente federativo (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), conforme o artigo 37, incisos XI e XII asseveram. Ele é aprovado por lei própria, votada pelo Congresso Nacional (artigo 48, inciso XV). Tudo isso (subsídios e teto remuneratório público) foi de cunho moralizador e devidamente comemorado quando implementadas.
Ocorre que os agentes políticos não exercem suas funções por devoção. Ela está presente sim, nas vocações, nas realizações profissionais e nos reconhecimentos (ou não) às suas atuações. Se bem fizerem, muito do ótimo. Se não procederem a contento, estão sujeitos aos mecanismos constitucionais e infraconstitucionais de correção próprios para cada carreira ou cargo eletivo (não-reeleição para o mandato; aplicação de sanção disciplinar e até ações judiciais responsabilizatórias). É preciso ressaltar: numa sociedade como a nossa, que reconhece os valores sociais do trabalho como fundamentos da nossa República (artigo 1º., inciso IV), todos merecem a sua devida contrapartida financeira. Todos têm suas contas para pagar, suas famílias para cuidar, seus desejos humanos e honestos por realizar. Evidentemente, dentro do sistema democrático, o que é ou não remuneração devida será, sempre, objeto de discussões as mais diversas. De toda sorte, parece não existir óbice sério, nem pelas opiniões mais radicais, sobre o direito dos agentes políticos terem uma boa remuneração e que ela seja, uma vez incidente a corrosão inflacionária, alvo de reajustes periódicos e adequados. Todos os trabalhadores têm direito a isso. Os servidores (dos quais não se dissociam, no particular, agentes políticos), é da Constituição, têm direito à revisão geral anual da remuneração (art. 37, X) assim como os magistrados têm como prerrogativa a irredutibilidade da remuneração (art. 93, III). Não reajustar anualmente, quando a inflação não é zero, é reduzir. É muito simples. Não teriam os agentes políticos direito ao reajuste dos seus subsídios por quê? Não são cidadãos brasileiros?
Dois argumentos mais usuais são levantados sempre que o tema reajuste (que alguns erradamente confundem com aumento – merecido com menor frequência, em tempos de estabilidade inflacionária) de subsídios de parlamentares, Presidentes da República e Ministros do STF vem à tona: a) os detentores de mandatos federais (parlamentares e Presidentes da República) têm uma série de mordomias; b) os juízes não podem ter uma remuneração muito superior ao salário mínimo, considerando-se o seu escasso valor no Brasil. Aqui chega-se ao mais difícil: esses argumentos são consistentes ou, se são, o quão consistentes eles são?
Primeiramente, o cargo de Presidente da República é o maior da nação, o mais importante. Não faz muito sentido ou não se concebe alguém entender que o Presidente de um país com cerca de 190.000.000 de habitantes deva residir em imóvel alugado, muito menos que possa dispensar uma equipe própria para lhe garantir assessoramento no exercício da função (motoristas, seguranças, carros oficiais etc). Também os parlamentares têm suas necessidades inerentes à função que assumiram. O direito à ajuda de custo no início e no fim do mandato (Decreto Legislativo 7/95) é emblemático. Todo e qualquer trabalhador que mude de residência, ainda que temporariamente, faz jus à indenização pelo transporte e mudança e acréscimo remuneratório. Isso está na CLT (artigos 469, parágrafo 3º e 470). Não parece digno negar isso aos mandatários que nós escolhemos para irem residir no Distrito Federal, deslocados que foram dos seus Estados. O abuso a isso é que não pode, como é o caso dos suplentes receberem por poucos dias de exercício do mandato.
Da mesma forma, é lícito que possuam uma cota mensal para ajudá-los no mandato, de forma a garantir canais de comunicação com os cidadãos e eleitores. Há que se separar a propaganda institucional da pessoal. O retorno, a divulgação das iniciativas, projetos e atividades parlamentares não é um direito do Senador ou Deputado. É uma obrigação, que adequa o Legislativo a dois princípios caríssimos ao serviço público e que também estão na Constituição Federal: publicidade e eficiência (artigo 37, caput). Por fim, é razoável uma verba que garanta o retorno de parlamentares a seus Estados. Quem acredita que um Deputado ou Senador deva assumir as funções e permanecer durante todo o tempo em Brasília, parece acreditar ingenuamente que o distanciamento dos seus concidadãos, a alienação, é algo que ajudará no perfil do bom legislador. Os parlamentares atuam e representam a imensidão cultural e de interesses que é o Brasil, não reduzível ao que acontece em Brasília, uma pequena amostra do país. O Senador ou Deputado que não comparece ao seu reduto eleitoral, ao seu Estado, não interage com a sociedade. Principalmente, sofre grande risco de não ser reeleito.
Por outro lado, no que tange aos juízes, deve-se deixar claro que o teto hoje do serviço público federal (o subsídio de Ministro do STF) é o previsto na Lei 11.143/2005, com o reajuste concedido em 2009 (Lei 12.041/2009), que foi de 5,0% em setembro daquele ano, com mais 3,88% em janeiro de 2010. Na verdade, esse índice foi um pouco mais da metade do que ali já era devido (faltaram 4,6%). Ele está hoje em R$ 26.723,13 (Resolução 423/2010 do STF). Para o início da carreira, está em R$ 21.766,15. Trata-se de valores brutos, sem descontos legais (imposto de renda, seguridade social etc). Aplique-se algo em torno de 30% a menos e teremos a realidade: R$ 18.706,00. Esse é, aproximadamente, o subsídio líquido de um Ministro de STF – a Corte a quem são submetidos todos os grandes temas do Brasil, inclusive a constitucionalidade de leis, a extensão dos direitos individuais, o julgamento dos parlamentares, as grandes questões econômicas, a cassação de mandatos etc. Nos termos da Constituição, em sistema de rodízio, três Ministros do STF acumularão as funções de Ministros do Tribunal Superior Eleitoral (pelas quais recebem o pagamento de jetons por cada sessão que participam até o limite de oito – o que importa no valor bruto, com a incidência do imposto de renda de 27,5%, em R$ 4.617,75). Poderão, se sobrar tempo, exercer uma função de magistério (artigo 95, parágrafo único, I). É raro eles se dedicarem ao ensino. Não há tempo, como de resto não há para boa parte dos Juízes brasileiros, já que o sem-número de processos não deixa.
Existem verbas temporárias (como diárias e ajuda de custo) que possuem caráter indenizatório e, portanto, não são computados. São verbas previstas na Lei Orgânica da Magistratura Nacional e reconhecidas via Resolução do CNJ. As diárias, à semelhança da ajuda-de-custo, de que já falamos, são pagas habitualmente na iniciativa privada a todos os trabalhadores que precisem se deslocar permanentemente ou não do seu local originário de trabalho. Não teriam os Juízes, que precisam ocupar os diversos rincões de todo o país, do Oiapoque ao Chuí, direito a tais por algum motivo especial? Seria para desestimulá-los a exercerem tal função? Seria para dizer aos recém-formados universitários (únicos que têm feito concurso, porque profissionais com mais tempo de mercado simplesmente não têm mais se submetido à sacrificante e desgastante magistratura) para não seguirem a carreira, pois ela habitualmente nega-lhes o que garante a todo e qualquer outro cidadão brasileiro que trabalhe honestamente?
Assim é que, ressalvados sempre direitos adquiridos, pretéritos à atual Constituição ou ao regime de subsídio (o que, de toda sorte, de constitucionalidade negada pelo STF), os servidores públicos do país só podem receber até o que recebe um Ministro do STF. Eis que os parlamentares, por meio do Decreto Legislativo n. 805/2010, e nos termos dos incisos VII e VIII do artigo 48 da Constituição, aprovaram idênticos subsídios para eles, para a Presidente e para o Vice-Presidente da República.
Tais valores sob hipótese alguma podem ser considerados fora da realidade mundial, menos ainda do Brasil. Goste-se ou não, sob o jugo dos parlamentares, da Presidente da República e dos Ministros do STF estão postas absolutamente todas as grandes questões e necessidades do povo brasileiro. Eles devem ganhar bem para isso. Muito bem! Não só porque enorme a responsabilidade, mas, principalmente, porque ninguém, absolutamente ninguém, candidatar-se-á a tais cargos se não possuírem remuneração digna. A atividade legislativa comporta uma nuance de demandas muito rica e intensa, de onde os parlamentares são constantemente cobrados e submetidos aos mais diversos interesses (bons e maus), o que é típico da democracia. Não adianta lembrar-se aqui dos maus parlamentares, como sendo este um argumento a sacrificar os bons parlamentares. Existem maus parlamentares como existem maus profissionais em todas as outras categorias (juízes, médicos, advogados, lixeiros, empregadas domésticas etc.), sem exceção. Nem mais, nem menos, na proporção do que isso incide no povo brasileiro, com todo o seu caldeirão cultural de flexível noção ética.
É demagógica eventual tentativa de simplificar ou vincular tão relevantes atribuições ao salário mínimo (cujo aumento é habitualmente dificultado pela vinculação dos benefícios da seguridade social e da dificuldade dos pequenos Municípios em honrar valores maiores). Considerar as expectativas de um país pelo que ele não tem de bom (valor razoável para um piso salarial), ao invés de lutar para que todos melhorem (ou para que outros não melhorem) ou tentar sabotar os que buscam a melhoria para si, não é iniciativa séria. É, acima de tudo, discurso fácil e, portanto, sem suficiente informação.
Daí porque incide o direito dos Magistrados Federais de buscarem o reajuste dos subsídios, eis que o espiral inflacionário não está afastado no nosso país. Em razão disso, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 7.749/2010, de iniciativa do STF, que corrige em 14,97% o subsídio dos Ministros do STF. O valor foi calculado a partir de estudos técnicos do próprio STF e estão adequados à realidade. Ele representa a somatória do IPCA de 2009 (4,31%), da projeção do Governo para o ano de 2010 (5,2%) e do resíduo inflacionário de 4,60% remanescente do reajuste concedido pela Lei n. 12.041/2009. A par disso, a Associação dos Juízes Federais (AJUFE) ajuizou mandado de injunção para ver garantido tal direito, enquanto permaneça em mora o Congresso Nacional. Somente para se ter uma idéia, enquanto de 2005 a 2011 os juízes tiveram um reajuste de 8,88% o salário mínimo teve um reajuste de 81,66%. O IPCA (referencial utilizado para o reajuste), acumulado de 2005 a 2011 é de 32% (em números arredondados).
Agentes políticos, no caso específico os magistrados, como quaisquer outros cidadãos, têm seus direitos, dentre eles, o de serem adequadamente remunerados. E um país que assim não procede não pode lhes exigir bons e céleres julgamentos, abrindo espaço para a fraqueza e a insatisfação das instituições democráticas.
 

 

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